Alguns amigos me avisaram logo que souberam da grande notícia: "Zé, já 'tá sabendo? Hermeto Pascoal vai tocar na Lona de Jacarepaguá?". Outros vieram com outra informação: "Pô, vai ter show do Hermeto na Lona de Bangu". Isto significava que eu tinha duas oportunidades de conferir uma apresentação ao vivo de um dos maiores músicos do mundo, já que haveria duas datas seguidas (sexta e sábado) em diferentes Lonas Culturais.
Hermeto Pascoal é possuidor de um talento musical tão grande, revolucionário e diferenciado, que para nós reles mortais, ele fica no limiar entre a genialidade e a loucura. Pois sua música não tem limites ou padrões, e os "normais" que estão acostumados com as coisas lineares, muitas vezes tendem a estranhar ou a simplesmente não entender.
Como eu tinha um compromisso no sábado, não pude conferir o show de Jacarepaguá, pertinho de casa. Mas não ia dar mole de perder em Bangu também. E é lá, no bairro mais quente do Rio de Janeiro, que o palco é batizado exatamente com o nome de Lona Cultural Hermeto Pascoal. Uma homenagem mais do que merecida, já que o músico morou por mais de quarenta anos num mítico casarão em Jabour, localidade banguense que antes apresentava um ar de roça, e que pelo aumento da violência, fez com que Hermeto e sua atual esposa, a jovem cantora Aline Morena fossem viver em um apartamento em Curitiba.
O show era também a comemoração aos seus 76 anos, e além dos convidados e do público ávido por músico, a festa atraiu um penetra que chamou atenção desfilando pela platéia e passeando pelo palco, minutos antes do início da apresentação. Era um gatinho, que fez relativo sucesso.
Hermeto era a grande estrela da noite, mas na prática o show era de seus músicos, tanto que ele não estava no palco na primeira música. Antes da segunda ele foi anunciado, e lá estava a figura daquele albino, baixinho,de barbas e cabelo brancos e longos, usando camiseta florida, esbanjando simplicidade e simpatia.
Foi diretamente para um teclado colocado a direita do palco, de onde ele comandou a banda como um maestro, limitando-se a puxar os temas das canções e organizando a ordem eme que os músicos solavam, e determinando quando seria o final de cada música.
Levei uma ou duas músicas para conseguir entrar no mundo hermetiano, pois "à primeira ouvida" parece que estamos diante de uma bagunça sonora, onde cada uma toca o que quer, da maneira que achar melhor. Mas depois que consegui penetrar nesse universo, fiquei maravilhado com a loucura libertária onde os músicos exercem os ensinamentos do mestre. O grande baixista Itiberê Zwarg, velho parceiro de Pascoal, ficou louco de raiva, com os problemas enfrentados com seu amplificador. Ele já estava bastante irritando, quando no meio de um dos seus solos, entrou uma tremenda distorção, que o fez gritar no microfone e a socar seu instrumento. O baterista Marcio Bahia entrou na onda e começou a duelar rufando seus tambores e batendo em seus pratos, o que deixaria qualquer banda de Heavy Metal com inveja.
O show chegou a ser interrompido para solucionar o problema e também para melhorar o retorno para o saxofonista/flaustista Vinicius Dorin.
Assistir Marcio Bahia em ação é uma verdadeira aula de bateria. Domínio completo do instrumento, e total fluência em uma enorme quantidade de ritmos, que tinham seus andamentos alterados a todo momento com perfeição cirúrigica. É o tipo raro de baterista que consegue fluir sobre todas as peças.
O pianista Andre Marques nos brindava com lindos solos, toda vez em que Hermeto o solicitava. Seus improvisos aliavam virtuosismo e sentimento.
Outro membro da família presente foi o percussionista Fabio Pascoal. Com um kit bastante inusitado, formado por canos de pvc, sinos, pá de pedreiro, entre outras peças capazes de deixar papai orgulhoso.
Hermeto por sua vez, não fez as famosas estripulias de transformar objetos do dia a dia em instrumentos musicais, como tirar som de uma bomba de encher balões ou chaleiras. Além do piano elétrico, ele arriscou algumas notas na escaleta, e no finzinho fez uma graça na sanfona de oito baixos. Infelizmente também não rolaram suas performances geniais de flauta, clarineta, e sax. O que ele não deixou de fazer foi puxar da platéia coros que eram reproduzidos com perfeição, enquanto a banda mandava complexas harmonias.
No meio do show, jovens músicos da orquestra de Itiberê, garotas e rapazes de grande domínio na obra de Hermeto, subiram ao palco para também prestar uma homenagem, interpretando 3 canções. Enquanto o equipamento era trocado,e a bateria remontada (já que o novo baterista é destro e Marcio Bahia canhoto), o baixista Itiberê solava enquanto solfejava as notas. O barulho da platéia o irritou, ele parou de tocar, deu esporro na galera, pediu respeito à música, e só quando conseguiu silêncio voltou a tocar. A garotada arrebentou, provando que a Música Brasileira tem um belo futuro garantido.
Hermeto e banda volataram pra tocar mais, e seriam mais uma vez interrompidos, dessa vez para entrada de amigos e vários familiares que com direito a bolo de aniversário puxaram um animado "Parabéns pra Você".Não cronometrei, mas fiquei com a impressão de que o show foi curto. Não teve bis, e Fabio Pascoal voltou sozinho apenas para sortear dois livros e o novo DVD de Hermeto que foi a realização de um sonho: lançar um trabalho feito exclusivamente com sons feitos do próprio corpo. Ele gravou tudo sozinho, criando sons cantando, batendo palmas, coçando a barba. Até o barulho do seu estômago foi usado.
O DVD estava sendo vendido na Lona, e foi exibido no telão, ao ar livre, após o show.
E voltando ao show, ele foi encerrado com os 4 músicos descendo para a pista cada um com um par de canos que eram batidos no chão, promovendo uma verdadeira sinfonia, mesclando percussão com notas musicais. Enquanto isso o casal Aline e Hermeto improvisavam melodias vocais e soltavam rimas, que iam de agradecimentos ao público a declarações de amor mútuas.
Vida Longa ao Mestre Hermeto Pascoal!
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